domingo, junho 11, 2006

Sem clichê roqueiro


Após 20 minutos de filme, e pouquíssimas informações narrativas na tela, o espectador sabe exatamente qual é a proposta conceitual de ‘Last Days’. Pode então, acompanhar com serena cumplicidade todas as imperturbáveis escolhas que se seguem até o fim.

Gus van Sant não esconde a sua falta de interesse pelo cinema-sacada (aquele tipo de filme que surpreende o espectador com reviravoltas na trama, revelações bombásticas e outras técnicas narrativas). ‘Last Days’ é essencialmente previsível, algo já apontado por alguns filmes anteriores do diretor. Afinal, foi dele a idéia de refilmar plano a plano o clássico de suspense de Hitchcock e um dos filmes mais vistos e queridos de toda a história do cinema: Psicose.

Sendo guiado pela mesma idéia de previsibilidade, Van Sant desenvolve um cinema cada vez mais autoral e cada vez mais distante do senso estético comum encontrado na maior parte dos cineastas que abordam o universo dos jovens contemporâneos. Nesse ponto, ‘Last Days’ se relaciona com toda sua filmografia, especialmente Elefante, filme anterior que apresenta inquietações estéticas muito parecidas.

Ao se basear num acontecimento excessivamente tratado pela mídia, o suícido de Kurt Cobain, Van Sant pode tranqüilamente dialogar com elementos que já fazem parte do repertório do espectador, diluindo pouco a pouco as possíveis expectativas dramáticas. Uma espécie de demarcação de posição, mostrar a segurança de suas escolhas e trazer a tona o essencial de seu cinema.

Dessa forma, após longo silêncio (verbal) no começo do filme, o primeiro contato é travado quase que por acaso, sem nenhuma motivação pra trama. O diálogo nada acrescenta e a nada quer chegar, numa espécie de sabotagem da gramática narrativa audiovisual.

O filme brinca com uma expectativa clichê de certo tipo de espectador. Não apenas pela conversa com sua mãe (na qual ela chama a atenção pro fato dele ser um clichê roqueiro), mas sobretudo pelo ritmo dos planos. Em contraposição a toda estética clipada usada na representação do universo musical (ironizada pelo clip ‘brega’ que passa na tv), o filme se desenvolve em um contínuo escoar lento do tempo.

E é nesse ponto que se percebe um artista consciente de suas escolhas estéticas, muito mais além do que a brincadeira de um sabotador experimental. Um verdadeiro antídoto ao cinema contemporâneo que já mostra sinal de cansaço com a (má) utilização da ‘câmera na mão, e enquadra o que der, do jeito que der’. Não um anti-cinema excessivamente experimental e afetado, mas sim, um cinema econômico, bem ao gosto de Tarkovski, ou mesmo Antonioni. Um cinema mais sensorial e menos informativo. E não diz a regra, que quanto menos informação, mais deve ser a atenção ao que nos é dado? Uma hiper valorização dos elementos em tela que exige mais contemplação do que propriamente entendimento do enredo.

Afinal, é importante ressaltar que poucos filmes contemporâneos souberam utilizar tão bem o poder do som na construção de sua atmosfera. Nada tão essencial em meio à banalização do som e da música utilizada em excesso para envolver a qualquer custo o espectador na trama. Nada de hits conhecido para animar platéias ansiosas em ver seus gostos retratados na tela. Nada de clips audiovisuais (a não ser a piada televisiva). Nada de shows ao vivo. E sim um grito quase primal, sempre solitário, filmado por uma câmera imperturbável em seu lento travelling ou em seu seguro enquadramento.

Ao contrário do que se pode pensar, ‘Last Days’ não é um filme de difícil deglutição estética. É uma obra coerente com suas escolhas, um filme de suave movimento. E dessa forma, vai-se construindo uma ligação íntima entre o espectador e a imagem que se vê. Um cinema de vitalidade hipnótica ao avesso, que não entorpece os sentidos, aguça-os. Algo como ‘cinema de poesia’.